Neste breve texto tentaremos resumir as principais características da Ação Civil Pública matriz, aquela prevista na Lei 7.347/85 (LACP), com amparo constitucional, art. 129, III da CF.
Como esclarece Zavascki (2009, p. 53-55), ainda que não constitua exigência científica é adequado diferenciar para fins didáticos a ação civil pública, aquela para tutela de direitos difusos e coletivos stricto sensu (tutela de direitos coletivos), da ação civil coletiva, aquela voltada à tutela de direitos individuais homogêneos (tutela coletiva de direitos).
A ação civil pública, assim entendida, tem como pedido imediato, por sua amplitude, o de qualquer natureza, ou seja, condenatório, declaratório, constitutivo, mandamental ou executivo. E por pedido mediato, a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
Prevê o art. 1º da LACP a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração da ordem econômica e da economia popular, e a Constituição, art. 129, III, a proteção ao patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (previsão contida junto às funções institucionais do Ministério Público).
Salvo a restrição contida no parágrafo único do art. 1º da LACP, que veda a ação de pretensão que envolva tributos, contribuições previdenciárias, FGTS ou outros fundos de natureza institucional, cujos beneficiários podem ser indevidamente determinados, não há limitações para seu objeto, sendo impossível sua delimitação; afirmação que encontra respaldo no conceito aberto previsto na constituição – “outros interesses difusos e coletivos”.
Possível é, contudo, trabalhar conceitualmente interesses e direitos difusos e coletivos stricto sensu, sendo aqueles os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (Art. 81, I do CDC) e, estes, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas (relativamente determináveis) ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Com a delimitação posta é possível exemplificar os direitos difusos como a pretensão ao meio ambiente hígido, posto compartilhada por número indeterminável de pessoas, não podendo ser quantificada ou dividida entre os membros da coletividade (Mazzili, 2003, p. 48-50) e os coletivos como a pretensão à fixação de um piso mínimo para a categoria, que estão ligadas por uma relação jurídica-base à parte contrária – relação de emprego (Dinamarco, 2001, p. 56).
A possibilidade de reparação moral é controvertida na doutrina e na jurisprudência, face à sua natureza, que se afasta do caráter transindividual dos direitos coletivos stricto sensu, embora existam precedentes favoráveis à sua aplicação (AP 70035339431 TJRS).
Importante destacar que a preferência da tutela será pela recomposição em espécie da lesão ocorrida.
É possível a cumulação de pedidos na ACP. A corrente jurisprudencial que criou um comando de alternatividade a impedir a cumulação com base em uma exegese literal do art. 3º da LACP recebeu fortes críticas, já que retiraria a própria essência da lei (de amplitude). A leitura mais correta deve ser feita de forma explicativa e não de exclusão (conjunção alternativa), viabilizando a cumulação de pedidos, por exemplo, de condenação e de cumprimento de obrigação, ou ainda, desses com pedido constitutivo, enfim.
Para tanto deve ser feita uma leitura sistemática do art. 21 da Lei 7.347/85 com os arts. 83 e 84 do CDC, já que existente um inter-relacionamento entre os diplomas, criando, juntamente com a Constituição, o assim denominado microssistema coletivo.
A competência para a ACP é absoluta. Deriva da delimitação criada pelo legislador que vinculou à competência funcional do juízo onde ocorrer o dano (art.2º da LACP). Desta forma é inderrogável e improrrogável por vontade das partes.
Ressalva deve ser feita à competência da Justiça Federal, que encontra amparo no art. 93 do CDC (leitura integrativa face ao microssistema referido). Nos demais casos será competente a justiça local, quando o dano estiver restrito aquele local. Não é, porém, qualquer interesse da União que fará com que a competência seja da Justiça Federal, há que incidir uma das hipóteses constitucionais. Caberá ainda à Justiça estadual conhecer e julgar as ações civis públicas ou coletivas em que sejam interessadas, em qualquer posição processual, sociedade de economia mista, sociedade anônima de capital aberto e outras sociedades comerciais, ainda que delas participe a União, como acionista. Por outro lado, a propositura da ação pelo MPF é suficiente para determinar a competência da Justiça Federal, por incidência do ar.t 109, I da CF.
Será da Capital do Estado quando atingirem comarcas de forma significativa do ponto-de-vista econômico, social e cultural, e será do Distrito Federal quando significativa parcela do território nacional for atingida.
Para maior clareza, transcrevemos, na íntegra, a precisa lição de Mazzili:
a) tratando-se de danos efetivos ou potenciais a interesses transindividuais, que atinja todo o País, a tutela coletiva será de competência de uma vara do Distrito Federal ou da Capital de um dos Estados, a critério do autor. Se a hipótese se situar dentro dos moldes do art. 109, I, da CR, a competência será da Justiça federal; em caso contrário, da Justiça estadual ou distrital. A ação civil pública ou coletiva poderá, pois, ser proposta, alternativamente, na Capital de um dos Estados atingidos ou na Capital do Distrito Federal;
b) Em caso de ação civil pública destinada à tutela de interesses transindividuais que compreendam todo o Estado, mas não ultrapassem seus limites territoriais, a competência deverá ser, conforme o caso, de uma das varas da Justiça estadual ou federal na Capital desse Estado;
c) Em caso de tutela coletiva que objetive a proteção a lesados emmais de uma comarca do mesmo Estado, mas sem que o dano alcance todo o território estadual, o mais acertado é solucionar a hipótese com as regras de prevenção, em favor de uma das comarcas atingidas nesse Estado;
d) Em caso de tutela coletiva que envolva lesões ocorridas em mais de um Estado da Federação, mas sem que o dano alcance todo o território nacional, a tutela coletiva será da competência de uma das varas estaduais ou federais da Capital de um dos Estados envolvidos, conforme o caso, à escolha do co-legitimado ativo. Mais sensato nos parece valermo-nos das regras de prevenção, ajuizando a ação na Capital de um dos Estados atingidos, e deixando para ajuizá-la na Capital do Distrito Federal somente quando o dano tiver efetivamente o caráter nacional.[1]
Incompetentes são os Juizados Especiais, em todas as esferas, por aplicação análoga da vedação existente no art. 3º, I da Lei 10.259/2001 e da impossibilidade de ampla produção de provas, requisito indispensável face à complexidade das ACPs.
Ao contrário do sistema norte-americano, onde há a figura do representante adequado, a legitimação no direito pátrio é conferida ope legis, ou seja, por determinação legal. Trata-se, portanto, de legitimação autônoma, que nada tem a ver com a legitimação extraordinária, muito menos com a ordinária, já que o objeto da ação são interesses e direitos difusos e coletivos, onde inexiste titular de direito subjetivo, não ocorrendo, portanto, substituição processual. Como o objeto é indivisível, a aplicação (até mesmo criação) pelo juiz é do direito objetivo.
Ensina Tesheiner (2010, in processoscoletivos.net), “que a ideia de direitos subjetivos apenas turva a clareza do pensamento, pois numa ação em prol dos animais objeto de maus tratos, seria possível dizer que o MP tem legitimidade extraordinária, sendo a ordinária a dos animais?”
A legitimação autônoma aqui se trata de um tertium genus. Ela incide de forma concorrente, pois há pluralidade de legitimados, inexistindo a necessidade da anuência de um para que qualquer outro proponha a ação. É disjuntiva, pois a atuação pode ocorrer de forma isolada, não exigindo litisconsórcios; mas havendo, é facultativo.
Assim, nos termos do art. 5º da LACP são legitimados o Ministério Público, a Defensoria Pública, fundação ou sociedade de economia mista e as associações. O requisito de constituição a mais de ano é dispensado pela jurisprudência às associações, mantendo-se a da finalidade institucional, desde que presente (na discussão) o interesse social evidenciado pela dimensão do dano e pela relevância do bem jurídico a ser protegido.
O art. 82 do CDC acrescentou as entidades e órgãos da administração pública, direta e indireta, ainda que sem personalidade jurídica, destinadas à defesa dos interesses e direitos protegidos, que dependem de autorização da autoridade administrativa. A Constituição legitima os sindicatos e os partidos políticos com representação no Congresso Nacional.
Ainda que Ministério Público e Defensoria se apresentem como grandes atores na utilização deste instrumento de cidadania, contra esta última existem duas ADINs face à discussão em torno do transbordo ou não de suas prerrogativas constitucionais ao manejar a ACP com amplitude do significado de necessitados.
Quanto ao legitimado passivo, será qualquer responsável por causar o dano.
Em caso de desistência da ACP a ação poderá ser assumida por qualquer outro legitimado, mas será obrigatoriamente assumida pelo Ministério Público face à indisponibilidade da demanda coletiva.
A litispendência deve ser analisada não em face da teoria tríplice (partes, causa de pedir e pedido), mas sim em relação apenas ao objeto e à causa de pedir (Wambier, 2007, in Revista Ajuris). Na ACP é da propositura da ação (art. 2º, §único da LACP) que o juízo ficará prevento.
A reunião de processos sob o argumento da conexão ou da continência, além de tecnicamente incabível diante da identidade objetiva, acaba ocasionando tumulto processual e retardamento no julgamento (Mendes, 2010).
Portanto, a ação proposta posteriormente deverá ser extinta, o que parece mais lógico. Se assim não for, obrigatoriamente deve ocorrer a reunião das causas, a fim de preservar o princípio da economia processual, sob pena de violentar o sistema coletivo pátrio.
O procedimento é o comum, por aplicação subsidiária do CPC (art. 19 da LACP). A antecipação de tutela segue, portanto, o art. 273 e 461 do CPC. Medida cautelar pode ser concedida de forma incidente (art. 273, §7º do CPC) ou ser objeto de ação preparatória. A antecipação dos efeitos da tutela e da própria execução possui um obstáculo quando figurar no pólo passivo o Poder Público, que pode pedir a suspensão de medida liminar (procedimento que não possui natureza de recurso) sempre que tiver por fundamento evitar lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública.
Na ação civil pública são aceitos todos os meios legais de prova, bem como os moralmente legítimos, tanto para ação quanto para defesa. Exige-se do julgador, nos processos coletivos, maior ativismo na busca da verdade dos fatos, já que os interesses em jogo transcendem os das partes no processo. Não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação do legitimado ativo em honorários de advogado, custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé (art. 18 da LACP).
Há grande discussão sobre a possibilidade de adiantar valores (do Fundo para recomposição dos danos) quando o Ministério Público requerer perícia, ou repassar o custo ao réu, distribuindo o ônus probatório para que demonstre não ser o causador do dano.
As provas obtidas no inquérito civil devem ser valoradas em juízo, ainda que adquiridas de forma inquisitorial, já que o parquet é parte imparcial e economicamente desinteressada.
Particularidade dos processos coletivos é a ausência de coisa julgada no caso de improcedência por falta de provas, podendo a ação ser reproposta quando nova prova (surgida recentemente ou que na época não estava disponível) puder ser utilizada; o que não exclui a utilização, também, das anteriores.
Como dito, a sentença poderá conter tutela a qualquer espécie de pretensão. A procedência dos pedidos da ACP resultará na outorga da tutela de forma geral ou específica, líquida ou ilíquida, condenatória, declaratória, constitutiva, mandamental ou executiva, mediante sentença que seja congruente com a natureza do que foi postulado (ZAVASCKI, 2009, p.64-65).
A sentença pecuniária constitui última alternativa, sendo a preferência por reparação na espécie. Será convertido em perdas e danos, todavia, quando requerido pelo autor ou impossível prestar a tutela específica ou obtenção do resultado prático.
A sentença condenará o réu vencido nas custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, bem como em honorários advocatícios.
A previsão do art. 16 da LACP que limita a coisa julgada erga omnes à competência territorial do órgão prolator, no caso de procedência, fica subordinada à previsão do art. 103 do CDC. O legislador confundiu limites da coisa julgada com competência territorial. A doutrina considera a restrição inconstitucional e avisa que a alteração introduzida não abarcou a previsão do CDC que é mais ampla. No referido diploma, o art. 103 prevê que a coisa julgada erga omnes no caso de interesses ou direitos difusos (inciso I), salvo se julgado improcedente por insuficiência de provas e, prevê, coisa julgada ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, nos casos de interesse ou direitos coletivos stricto sensu, ressalvada a improcedência por insuficiência de provas.
No caso de insuficiência de provas (secundum eventum probationis), portanto, a coisa julgada será secundum eventum litis, ou seja, segundo o resultado do processo.
A coisa julgada nestes casos não prejudicará interesses e direitos individuais da coletividade, do grupo ou classe, e beneficiará os autores das ações individuais que requererem sua suspensão no prazo de trinta dias da ciência do ajuizamento da ação coletiva.
Tem-se com isso que a regra tradicional de que a coisa julgada não abarca a causa de pedir não se aplica às demandas coletivas (extensão in utilibus), que fica condicionada, como dito, ao requerimento de suspensão.
O cumprimento da sentença será feito na atual forma sincrética, nos mesmos autos, simplificando a via satisfativa do direito declarado. Na atualidade a preferência é para o cumprimento específico das obrigações de fazer ou não fazer e de dar coisa certa, mediante aplicação de astreintes(multa por dia de descumprimento - até mesmo para o cumprimento de obrigações de pagamento de quantia certa em dinheiro, substituindo-se a execução por sub-rogação pela execução por coerção). Fora desse contexto estão as sentenças declaratórias e as constitutivas.
Se a obrigação for de fazer ou não fazer e de entrega de coisa, será executiva lato sensu. Se for obrigação de pagar quantia, será considerada título executivo, dando ensejo à providências próprias das obrigações dessa natureza.
As multas previstas possuem finalidades próprias e momentos de exigibilidade. O produto da execução, se em dinheiro, reverterá para um fundo.
O produto de condenação pecuniária (ou valor de multa diária para cumprimento de obrigação – art. 11 da LACP) reverterá para um fundo gerido pelo Conselho Gestor do Fundo de Defesa de Direito Difusos (CFDD) ou por Conselho Estadual, com a participação obrigatória do MP. A indenização por violação de direitos difusos, destinada ao fundo, não impede postulação individual de ressarcimento.
Há grande discussão sobre a destinação dos valores dos fundos, já que nem sempre são utilizados (ou podem receber destinação diversa) para reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses e direitos difusos e coletivos.
O cumprimento poderá ser realizado por qualquer legitimado ativo. Transcorrido sessenta dias do trânsito em julgado sem que o legitimado responsável pela propositura promova a execução, poderá qualquer dos demais (ou deverá o Ministério Público) promover a execução.
Aos recursos se aplicam em regra as disposições do CPC, desde que não colidam com as disposições da LACP. O prazo em dobro é benefício do MP, da Fazenda, da Defensoria e de quem exerça cargo semelhante, das autarquias, das fundações públicas, enfim.
Não cabe impetração de mandado de segurança como substitutivo do agravo de instrumento previsto no art. 12, de negativa ou concessão de tutela em decisão liminar, salvo quando há ilegalidade da decisão impugnada (STJ, AgRg no RMS 25104/SP) ou quando o pedido liminar não for em instância inferior (STJ, RMS 25949/BA). E a liminar concedida por Tribunal local pode ser cassada por decisão do presidente do STF ou do STJ.
Não há na tutela coletiva, em regra, efeito suspensivo nos recursos. Pode ser concedida, todavia, de ofício pelo juiz ou a requerimento da parte.
[1] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. São Paulo: Saraiva, 16ª ed., 2003, p. 243.